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George Lucas, entre motores e mitos

  • Foto do escritor: Matheus Benites
    Matheus Benites
  • 20 de out. de 2024
  • 5 min de leitura

Há não tanto tempo assim, nesta mesma galáxia, um homem sofreu um acidente de carro. Era o dia 12 de junho de 1962 e o jovem de 18 anos George Walton Lucas voltava para casa em seu carro, três dias antes de sua formatura. Ele nutria, neste período, o sonho de se tornar um piloto de corrida. Foi neste passeio de volta da biblioteca que um Chevy Impala bateu violentamente em seu carro, fazendo-o capotar e entregando à força o destino do futuro cineasta. O cinto de corrida, projetado para manter o motorista preso ao assento em caso de colisão, falhou e o arremessou para fora, o que acabou salvando sua vida. Lucas foi levado inconsciente ao hospital com várias fraturas, mas recuperou a consciência em poucas horas. Durante os quatro meses de recuperação no hospital, ele refletiu sobre o acidente e decidiu que não se tornaria piloto de corridas. Na necessidade de descobrir o que fazer da vida, o californiano canalizou seu interesse por motores, latarias e turbinas nas histórias que mudariam para sempre o imaginário da ficção científica e da fantasia. Sua ambição e interesse por carros foram equilibradas por sua vasta curiosidade pelas culturas humanas. E ele estava no lugar certo, no momento certo. A competência e a oportunidade foram se alinhando no período de faculdade de Cinema e incentivo por parte dos produtores de grandes estúdios.


Alec Guinness e George Lucas no set de Star Wars


O primeiro longa-metragem de Lucas, THX-1138, de 1971, foi inspirado por um curta seu e apresenta um estilo que só poderia ter sido fruto da Nova Hollywood: planos abertos de longa duração, montagem intelectual, destaque para atmosfera, nudez e minimalismo. Assim ele narra visualmente a escapatória de um jovem e careca Robert Duvall da vida opressiva, mecânica e vigiada à qual havia sido subjugado desde o nascimento. Sendo franco, não é um filme exatamente divertido.  Mas também, como obra estética, não é o que ele se propõe, primariamente, a ser. THX é um filme lento, atmosférico, contemplativo do vazio da vida humana e crítico às tentativas políticas de preencher este vazio através da coerção e do controle. Como O admirável mundo novo de Huxley, o longa de estreia de Lucas afirma que comprimidos farmacêuticos podem sanar sensações ruins, mas trazem um perigo maior do que elas quando usados como resposta para tudo: a perda da própria humanidade, da capacidade mesma de sentir e padecer com integridade. Como 1984 de Orwell, THX nos lembra mais uma vez que a cega conformidade aos costumes alheios é uma receita pronta para a servidão e a perda de identidade. No último plano do filme, o sujeito THX finalmente alcança a superfície, e vê pela primeira vez o sol laranja, que mais tarde ecoaria no céu de Tatooine e também em Apocalipse Now, grande filme de seu amigo Francis Ford Coppola. Mais do que qualquer outra coisa, é a história do esclarecimento, muito antes contada por Platão em seu mito da caverna de A República. Os prisioneiros passam a vida na ilusão de que as sombras na parede são reais, quando são apenas sombras projetadas por seus enganadores. Mas o filósofo sai da caverna e vê o mundo real, espantando-se de início e apenas gradualmente discernindo as coisas. Seu trabalho, então, é retornar à caverna e avisar aos outros a verdade. Mas será que eles darão-lhe ouvidos?

Percebe-se o quanto THX antecipa Matrix e tantas outras produções, em um filme concebido com a ousadia formal e a potência filosófica que os filmes hollywoodianos dos anos 70 tiveram e que até nos faz pensar em Solaris, de Andrei Tarkóvski. Mas também Star Wars, com seu estilo comercial, é filosófico. O mais importante da saga mais famosa da cultura pop não são as naves espaciais ou os sabres de luz, mas sim a moral. Em um universo sustentado por uma força cósmica, a qual certos seres podem sentir e manipular com seu livre-arbítrio, para o bem ou para o mal. Star Wars é sobre este embate atemporal, após o qual o bem deve prevalecer. Sobre o mal, a luz sobre as trevas, a verdade sobre a ilusão. Não existe terreno cinza em Star Wars. Amplamente influenciada por diversas culturas e tradições espirituais, a saga se trata da corrupção e redenção de Anakin Skywalker e sobre a diferença entre virtudes e vícios, serenidade e medo, compaixão e raiva, amor e ódio, Jedi e Sith. A força é um princípio ontológico. George Lucas é metafísico. Se Star Wars foi tão influente no nosso imaginário, isso se deve tanto a um excelente trabalho de pesquisa e worldbuilding quanto à fundamentação da saga em uma essência mitológica milenar e plural. Tanto logos quanto mythos. Há ali rastros de Kurosawa, teatro Kabuki, Isaac Asimov, Flash Gordon, evangelhos, Tao Te Ching, Homero, para só citar algumas referências. Star Wars é a mitologia contemporânea que surgiu no horizonte da segunda metade de um século marcado por niilismo, guerras e genocídios, desvelando para as mais diversas idades e intelectos os erros morais do totalitarismo, do fascismo e de se entregar às emoções que levam ao lado sombrio da força.

Bons romances, filmes e obras de arte em geral não pensam por nós, eles dão a pensar. Muitas pessoas da minha geração, que se apaixonaram por Cinema (e alguns por contar histórias) assistindo aos DVD’s das duas primeiras trilogias, consideram a saga um verdadeiro acontecimento em suas vidas, um que apontou caminhos para a exploração criativa e intelectual no sentido de que fala o mitólogo Joseph Campbell (“follow your bliss"). É lamentável, contudo, que o legado de Star Wars esteja sendo embaralhado com tantos conteúdos produzidos sem o mesmo cuidado. Refiro-me às produções Star Wars da Disney, as quais exibem uma aparência artificial, como se fossem quase todas comerciais de brinquedos ou desalmadas propagandas de ideologia woke. O Star Wars da Disney é um pretendente a Star Wars, produto de uma era em que a franquia já é mítica. Tendo despertado o mito de maneira segura e copy and paste em O Despertar da Força, a corporação perdeu o controle e não consegue mais pôr a fera para dormir. Será que somente o seu dono consegue fazê-la ninar? Será George Lucas a única solução para a franquia funcionar, mesmo enquanto no papel de produtor? Claro que não. Mas é preciso que as pessoas à frente da saga realizem o trabalho que Lucas e os criadores originais empreenderam, com o devido tempo, pesquisa e cuidado necessários, respeitando a essência da saga. O combustível para o motor da saga não é a opinião vigente ou o que dá retorno. O estudo dos mitos e a arte de criar bons mitos movem os motores das boas histórias.


Este ano eu publiquei o meu romance de ficção científica, Indesejáveis, que também é uma ópera espacial. Isso dificilmente teria acontecido se aqueles DVD’s não tivessem impressionado minha imaginação na infância, ou se George Lucas não tivesse sofrido o acidente de carro que mudou sua vida. Talvez o universo não tenha uma forca cósmica que o sustente, ou qualquer tipo de harmonia pré-estabelecida, mas mesmo assim a vida e a obra de George Lucas nos ensinam que temos muito a aprender com os acontecimentos e que nossas decisões moldam nosso mundo, por mais aleatório e misterioso que ele pareça.


Matheus Benites

Rio de Janeiro, 22 de agosto de 2023


Texto originalmente redigido para a mostra A força de George Lucas, do Estação Net de Cinema.

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